ARTIGO PRODUZIDO REFERENTE À COMUNICAÇÃO ORAL
VÉUS
E BURCAS: paisagens sociais veladas
Profª. Dra. Carmen Paternostro (UFBA)
Mestranda Thais Coelho e Sousa
(PPGD/UFBA)
Comitê: Configurações estéticas em dança
RESUMO: Orquestramos nessa proposta olhar a Dança do Ventre em
sua perspectiva histórica em fricção com questões de Orientalismo trazidas por
Edward W. Said (1978), contextualizando com temas tratados no âmbito da
sociologia das religiões, e da história do corpo pelo viés da cultura mulçumana
vista em Peter Demant, 2015. Serão debatidas distorções da visão do feminino
mantidas sob o prisma das determinações de ordem imperialistas coloniais e da
exploração e submissão do corpo da mulher por fundamentalismos culturais.
Palavras-chave: Dança do Ventre. Orientalismo. Cultura
Islâmica. Véus e Burcas.
VEILS AND BURCAS: social regions camouflaged
ABSTRACT: This feature
will include considerations of Belly-Dance in a historic perspective along with
aspects of orientalism as presented by Edward W. Said (1978). Furthermore will
be reached out to topics of religious sociology as well as the Mulcuman Culture
in Peter Demant (2015). Finally will be discussed the controversies about the
feminine body-concept as determined by colonialisms as well as the
exploration and submission of the women´s body by cultural fundamentalisms.
Key-words: Belly-dance.
Orientalism. Islamic culture. Veils and Burcas.
O Véu é uma peça do vestuário feminino
carregado de significados. Utilizado por mulheres de culturas diversas, o véu
tem a função de cobrir totalmente o corpo ou parte dele.
Algumas religiões recomendam cobrir os cabelos e
não os deixar à mostra como sinal de recato e modéstia, umas com menos, outras
com mais rigidez ou intensidade: Judaísmo, Cristianismo, Islã etc.
A notícia mais remota que se tem da utilização do
véu por mulheres remete à sua função sociocultural de atribuir alto
status ou, simplesmente, proteger a pele do sol, não tendo qualquer cunho
religioso, do que se pode concluir que o surgimento do véu antecede ao advento
das religiões. A exemplo, o uso do véu já existia entre os árabes antes mesmo
do aparecimento do Islã e começou provavelmente como influência bizantina, para
distinguir as mulheres livres de escravas e concubinas. No contexto muçulmano,
o uso do véu originalmente constituiu uma questão de etiqueta que comprometia
apenas as esposas do Profeta Maomé e se expandiu até chegar a uma segregação
sexual abrangente (DEMANT, 2015, p. 151). Atualmente esse costume chama atenção
do mundo pelo rigor com o qual tem tratado o corpo da mulher, cobrindo-o com os
mais diversos tipos de véus[1].
A depender da região do mundo mulçumano, o recato e
a modéstia recomendados pela religião podem se expressar de forma mais ampla e
intensa que o simples uso de um véu: engloba também o modo de se vestir com roupas
que não revelem o corpo e, sobretudo, o próprio comportamento.
Atribui-se à cultura muçulmana – e não somente à
religião – a responsabilidade pelo tratamento dado ao corpo da mulher. O uso do
véu e das demais vestimentas análogas não se justifica apenas no cumprimento
das prescrições do Alcorão. Tal condição funda-se numa cultura que, cada vez
mais, vem politizando a sua religião.
Mas nem sempre foi assim. Apesar de o Islã ter
surgido no começo do século VII, houve um tempo em que o corpo feminino convivia
razoavelmente com os preceitos religiosos sem os exageros do fundamentalismo
político e as mulheres desfrutavam de um certo livre-arbítrio em relação ao
próprio corpo.
Relatos históricos registram a migração de tribos
ciganas originárias do sul da Índia, que no início do século XVIII chegaram ao
Egito e lá se estabeleceram. As mulheres dessas tribos, chamadas ghawazze (forma plural, cuja forma
singular é Ghaziya), eram responsáveis pelo trabalho remunerado e consequente
sustento da família. A dança era a atividade desempenhada como ofício pela
mulher ghaziya. Dançarinas de rua, as ghawazee eram frequentemente contratadas
para animar as festividades. Apresentavam-se
de forma pública, como uma enérgica e característica movimentação de
quadril à qual se atribui a matriz de movimento, base da dança oriental árabe,
mais conhecida como Dança do Ventre.
Desta forma, essas mulheres se
relacionavam
com os próprios corpos: se enfeitavam com pulseiras, colares e brincos, se
movimentavam, tornavam os corpos públicos em suas apresentações, vestindo saias
rodadas e mostrando a barriga. Ainda que à margem da sociedade, a atividade das
ghawazee era aceita e coexistia com a religião islâmica e os seus preceitos de
modéstia e recato do corpo da mulher, tanto é que, se tornaram populares e até
o início da década de 1970 ainda era possível ver ghawazee trabalhando nas ruas
do Cairo.
Além disso, na história, encontram-se mulçumanas
como companheiras do Profeta Maomé, como líderes políticas, intérpretes de hadiths[2],
mártires xiitas, místicas, ulemás[3]
femininas, empresárias, administradoras de waqfs[4]
e numa variedade de outras funções. Fica claro que, pelo menos
inicialmente, as mulheres participavam da sociedade numa ampla gama de funções
(inclusive religiosas). Entretanto no decorrer do tempo, a posição social das
mulheres mulçumanas declinou (DEMANT, 2015, p. 151).
Neste contexto, é difícil fixar um perfil da
condição em que a mulher mulçumana se encontra, já que o universo islâmico não
constitui um bloco homogêneo. A situação da mulher varia muito de acordo com a
região em que vive e com as convenções sociais locais às quais está
condicionada. Muito mais que a própria religião, são os fatores culturais que
vão influenciar a mulher mulçumana a adotar ou não o uso do véu e até mesmo o
tipo de véu que irá usar.
É imprescindível ressaltar que nem sempre o uso do
véu é encarado como uma imposição ou representa uma situação de submissão para
mulher mulçumana que o adota. O uso do véu pode ser considerado apenas um
costume arraigado na cultura ou uma opção resultante de uma conversão
religiosa.
Diante disso, é necessário fazer a distinção entre
a conversão à religião mulçumana e a submissão ao fundamentalismo religioso que
interpreta o Alcorão a sua maneira para desvirtuar preceitos do Islã em virtude
de interesses puramente políticos.
Além disso, é preciso tratar a questão do uso dos
véus pelas mulheres mulçumanas com distanciamento do estereótipo da mulher submetida
criado pelo mundo ocidental. De fato, essa condição de submissão existe, pode
chegar ao extremo rigor, mas não é a única desfrutada pela mulher mulçumana no
Oriente.
Essa prática de criar estereótipos a respeito do
mundo oriental remonta ao Orientalismo de outrora, época das incursões
exploratórias no Egito organizadas e lideradas por Napoleão Bonaparte. Nesta
ocasião, artistas, pintores, escritores e poetas foram levados ao Egito para
retratá-lo.
O Oriente é olhado,
posto que o seu
comportamento quase (mas nunca totalmente) ofensivo tem origem em um reservatório de infinita peculiaridade; o europeu cuja sensibilidade
passeia pelo Oriente é um observador, nunca envolvido, sempre afastado [...]. O Oriente torna-se um quadro vivo de
estranheza (SAID, 1990, p.112).
Sob uma concepção eurocêntrica e machista, as
características do Oriente foram distorcidas. A mulher oriental foi retratada
em pinturas orientalistas quase sempre seminua e à serviço da lascívia do
europeu. Foi nesse contexto que se criou conceitos errôneos e personificações
de figuras exóticas e fantasiosas sobre odaliscas[5]
e haréns[6]
que em nada correspondiam à realidade e que até hoje influenciam a configuração
da Dança do Ventre.
As odaliscas estavam no patamar mais baixo da
hierarquia do palácio. As odaliscas eram mulheres escravas compradas em
mercados ou adquiridas em guerras, vendidas por sua própria família ou ainda
raptadas. A partir daí, eram levadas para o palácio para serem criadas. Eram
treinadas nas mais diversas funções pois, como chegavam muito jovens, não se
sabia o quanto teriam de capacidade ou beleza. O treinamento incluía modos,
etiqueta, leitura do Alcorão, tecer, bordar, dança, poesia, música. Sim,
incluía dança, como parte do aprendizado, mas não eram as “dançarinas do
palácio”. Este treinamento era supervisionado pela sultana valide, autoridade
máxima feminina no palácio. Algumas podiam ser nomeadas como servidoras do
“oda” (quarto) do sultão, ou encarregadas de suas roupas ou de seu banho.
Então, as odaliscas eram as escravas do palácio, treinadas para diversas
funções. E, apesar de dançarem um pouco, não eram as “dançarinas do palácio”,
mas sim criadas (DIB, 2013).
As mulheres no mundo mulçumano constituem objetos
de fascínio para o Ocidente: ontem “fantasia orientalista”, a sensual criatura
do harém; hoje vítima de opressão, velada e genitalmente mutilada. Ambas as
imagens representam um Oriente estereotipado, tanto voluptuoso quanto cruel,
mas sempre de uma alteridade aparentemente intransponível. Ambas são, portanto,
exageros que não descrevem a realidade social da esmagadora maioria das
mulçumanas, correspondendo apenas a fragmentos da realidade (DEMANT, 2015, p.
148).
O nosso estudo vai
problematizar a Dança do Ventre fazendo referências ao Oriente estereotipado
desde o processo colonizatório até a atualidade quando surge uma idéia
questionável de Orientalismo. Quando nós da civilização ocidental contemporânea
olhamos para esse mundo de mulheres de véus e burcas qual o sentimento que nos
atravessa? Que paisagem social descortinamos?
Procurando chegar mais perto
da problematização reconhecemos que o discurso criado sobre Orientalismo nasceu
entre os europeus quando quiseram destacar a existência de Oriente e Ocidente.
Nós e eles. Essa divisão reconhecida por Edward Said (1978) como imperialista,
criada por marcos colonizadores distinguia os europeus e não europeus. A
intenção inicial do autor ao discursar sobre Orientalismo foi fazer um estudo
crítico das tradições do mundo árabe e do mundo ocidental cristão hegemônico,
mais que um simulacro orientalista.
A tentativa desta pesquisa é
elucidar que o mundo oriental tem outras organizações para a vida pública da
mulher. São práticas sociais que determinam os sujeitos do nascimento até o
final da vida. São funções sociais criadas para a operação e funcionamento de
sistemas oligárquicos privados, que co-determinam a existência das mulheres. A
burca é uma moldura que potencializa uma ambientalidade espaço-temporal interna
para quem usa. Para quem vê do lado ocidental parece uma inaceitável paisagem
social velada, criada por fundamentalismos culturais.
[1] Burca: peça que cobre todo o rosto, com uma rede ou tela na altura dos olhos para permitir a visão; Niqab: véu que cobre todo o rosto, exceto por uma abertura na altura dos olhos; Chador: véu semicircular que envolve a cabeça, cobre todo o corpo e deixa a parte frontal do rosto à mostra; Al-Amira: cobre toda a cabeça e o pescoço e é composto por duas peças: uma cilíndrica (uma espécie de touca), que se ajusta ao contorno do rosto, deixando-o à mostra, e um lenço que cobre a cabeça; Hijab: lenço que cobre os cabelos e o pescoço, com o rosto à mostra; Shayla: lenço grande e retangular, que cobre a cabeça e é enrolado no pescoço, cruzando na altura dos ombros.
[3] Ulama ou
ulemás (sing. alim): “sábios” ou “preparados”; camada de especialistas em questões
religiosas e jurídicas.
[4] Waqf (pl. awqaf): fundação religiosa ou beneficente baseada na doação de bens
para fins religiosos ou sociais.
[5] O termo vem do turco Uadahlik, que significa criada de
quarto. Esse termo originou-se e era empregado nos palácios dos governantes do
Império Turco-Otomano. [...] O palácio era a sede do Governo e também a moradia
do governante e sua família. [...] Uma das estruturas do palácio era a do harém.[...] Existe uma hierarquia clara
dentro dos haréns dos palácios e as mulheres não estavam preocupadas apenas em
ficar reclinadas descansando, como é visto em diversas pinturas dos
orientalistas. [...] A hierarquia dentro do harém seguia o seguinte padrão:
odaliscas (as virgens, que não foram tocadas pelo sultão), concubina (companhia
noturna), ikbals (favoritas) e kadins/haseki (similar a esposa) (DIB, 2013).
[6] Harém, nada mais é do que o espaço reservado
à vida íntima, familiar num palácio. É o local de convivência da família e dos
parentes próximos, além de parte da criadagem. Outras pessoas não podem entrar
(DIB, 2013).
DEMANT, Peter. O mundo
muçulmano. São Paulo: Contexto, 2015.
DIB, Márcia. Será que as bailarinas são odaliscas?Disponível em: <http://marciadib.blogspot.com.br/2013/02/sera-que-as-bailarinas-sao-odaliscas.html>. Acesso em: 20 fev. 2013.
SAID, Edward
W. Orientalismo: o Oriente como invenção
do Ocidente. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
MAIS SOBRE O ORIENTALISMO:
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