quarta-feira, 22 de junho de 2016

Minha participação no Congresso Nacional de Pesquisadores em Dança - ANDA ‪

Minha comunicação oral sobre dança do ventre no Congresso Nacional de Pesquisadores em Dança - ANDA ‪#‎mestradoemdança‬ ‪#‎ufba‬ ‪#‎dançadoventre‬










ARTIGO PRODUZIDO REFERENTE À COMUNICAÇÃO ORAL



VÉUS E BURCAS: paisagens sociais veladas 

Profª. Dra. Carmen Paternostro (UFBA)
Mestranda Thais Coelho e Sousa (PPGD/UFBA)
Comitê: Configurações estéticas em dança

RESUMO: Orquestramos nessa proposta olhar a Dança do Ventre em sua perspectiva histórica em fricção com questões de Orientalismo trazidas por Edward W. Said (1978), contextualizando com temas tratados no âmbito da sociologia das religiões, e da história do corpo pelo viés da cultura mulçumana vista em Peter Demant, 2015. Serão debatidas distorções da visão do feminino mantidas sob o prisma das determinações de ordem imperialistas coloniais e da exploração e submissão do corpo da mulher por fundamentalismos culturais.
Palavras-chave: Dança do Ventre. Orientalismo. Cultura Islâmica. Véus e Burcas.

VEILS AND BURCAS: social regions camouflaged

ABSTRACT: This feature will include considerations of Belly-Dance in a historic perspective along with aspects of orientalism as presented by Edward W. Said (1978). Furthermore will be reached out to topics of religious sociology as well as the Mulcuman Culture in Peter Demant  (2015). Finally will be discussed the controversies about the feminine body-concept as determined  by colonialisms as well as the exploration and submission of the women´s body by cultural fundamentalisms.

Key-words:  Belly-dance. Orientalism. Islamic culture. Veils and Burcas.


            O Véu é uma peça do vestuário feminino carregado de significados. Utilizado por mulheres de culturas diversas, o véu tem a função de cobrir totalmente o corpo ou parte dele.
Algumas religiões recomendam cobrir os cabelos e não os deixar à mostra como sinal de recato e modéstia, umas com menos, outras com mais rigidez ou intensidade: Judaísmo, Cristianismo, Islã etc.
A notícia mais remota que se tem da utilização do véu por mulheres remete à sua função sociocultural de atribuir alto status ou, simplesmente, proteger a pele do sol, não tendo qualquer cunho religioso, do que se pode concluir que o surgimento do véu antecede ao advento das religiões. A exemplo, o uso do véu já existia entre os árabes antes mesmo do aparecimento do Islã e começou provavelmente como influência bizantina, para distinguir as mulheres livres de escravas e concubinas. No contexto muçulmano, o uso do véu originalmente constituiu uma questão de etiqueta que comprometia apenas as esposas do Profeta Maomé e se expandiu até chegar a uma segregação sexual abrangente (DEMANT, 2015, p. 151). Atualmente esse costume chama atenção do mundo pelo rigor com o qual tem tratado o corpo da mulher, cobrindo-o com os mais diversos tipos de véus[1].
A depender da região do mundo mulçumano, o recato e a modéstia recomendados pela religião podem se expressar de forma mais ampla e intensa que o simples uso de um véu: engloba também o modo de se vestir com roupas que não revelem o corpo e, sobretudo, o próprio comportamento.
Atribui-se à cultura muçulmana – e não somente à religião – a responsabilidade pelo tratamento dado ao corpo da mulher. O uso do véu e das demais vestimentas análogas não se justifica apenas no cumprimento das prescrições do Alcorão. Tal condição funda-se numa cultura que, cada vez mais, vem politizando a sua religião.
Mas nem sempre foi assim. Apesar de o Islã ter surgido no começo do século VII, houve um tempo em que o corpo feminino convivia razoavelmente com os preceitos religiosos sem os exageros do fundamentalismo político e as mulheres desfrutavam de um certo livre-arbítrio em relação ao próprio corpo.
Relatos históricos registram a migração de tribos ciganas originárias do sul da Índia, que no início do século XVIII chegaram ao Egito e lá se estabeleceram. As mulheres dessas tribos, chamadas ghawazze (forma plural, cuja forma singular é Ghaziya), eram responsáveis pelo trabalho remunerado e consequente sustento da família. A dança era a atividade desempenhada como ofício pela mulher ghaziya. Dançarinas de rua, as ghawazee eram frequentemente contratadas para animar as festividades. Apresentavam-se de forma pública, como uma enérgica e característica movimentação de quadril à qual se atribui a matriz de movimento, base da dança oriental árabe, mais conhecida como Dança do Ventre.
Desta forma, essas mulheres se relacionavam com os próprios corpos: se enfeitavam com pulseiras, colares e brincos, se movimentavam, tornavam os corpos públicos em suas apresentações, vestindo saias rodadas e mostrando a barriga. Ainda que à margem da sociedade, a atividade das ghawazee era aceita e coexistia com a religião islâmica e os seus preceitos de modéstia e recato do corpo da mulher, tanto é que, se tornaram populares e até o início da década de 1970 ainda era possível ver ghawazee trabalhando nas ruas do Cairo.
Além disso, na história, encontram-se mulçumanas como companheiras do Profeta Maomé, como líderes políticas, intérpretes de hadiths[2], mártires xiitas, místicas, ulemás[3] femininas, empresárias, administradoras de waqfs[4] e numa variedade de outras funções. Fica claro que, pelo menos inicialmente, as mulheres participavam da sociedade numa ampla gama de funções (inclusive religiosas). Entretanto no decorrer do tempo, a posição social das mulheres mulçumanas declinou (DEMANT, 2015, p. 151).
Neste contexto, é difícil fixar um perfil da condição em que a mulher mulçumana se encontra, já que o universo islâmico não constitui um bloco homogêneo. A situação da mulher varia muito de acordo com a região em que vive e com as convenções sociais locais às quais está condicionada. Muito mais que a própria religião, são os fatores culturais que vão influenciar a mulher mulçumana a adotar ou não o uso do véu e até mesmo o tipo de véu que irá usar.
É imprescindível ressaltar que nem sempre o uso do véu é encarado como uma imposição ou representa uma situação de submissão para mulher mulçumana que o adota. O uso do véu pode ser considerado apenas um costume arraigado na cultura ou uma opção resultante de uma conversão religiosa.
Diante disso, é necessário fazer a distinção entre a conversão à religião mulçumana e a submissão ao fundamentalismo religioso que interpreta o Alcorão a sua maneira para desvirtuar preceitos do Islã em virtude de interesses puramente políticos.
Além disso, é preciso tratar a questão do uso dos véus pelas mulheres mulçumanas com distanciamento do estereótipo da mulher submetida criado pelo mundo ocidental. De fato, essa condição de submissão existe, pode chegar ao extremo rigor, mas não é a única desfrutada pela mulher mulçumana no Oriente.
Essa prática de criar estereótipos a respeito do mundo oriental remonta ao Orientalismo de outrora, época das incursões exploratórias no Egito organizadas e lideradas por Napoleão Bonaparte. Nesta ocasião, artistas, pintores, escritores e poetas foram levados ao Egito para retratá-lo.

O Oriente é olhado, posto que o seu comportamento quase (mas nunca totalmente) ofensivo tem origem em um reservatório de infinita peculiaridade; o europeu cuja sensibilidade passeia pelo Oriente é um observador, nunca envolvido, sempre afastado [...]. O Oriente torna-se um quadro vivo de estranheza (SAID, 1990, p.112).

Sob uma concepção eurocêntrica e machista, as características do Oriente foram distorcidas. A mulher oriental foi retratada em pinturas orientalistas quase sempre seminua e à serviço da lascívia do europeu. Foi nesse contexto que se criou conceitos errôneos e personificações de figuras exóticas e fantasiosas sobre odaliscas[5] e haréns[6] que em nada correspondiam à realidade e que até hoje influenciam a configuração da Dança do Ventre.
As odaliscas estavam no patamar mais baixo da hierarquia do palácio. As odaliscas eram mulheres escravas compradas em mercados ou adquiridas em guerras, vendidas por sua própria família ou ainda raptadas. A partir daí, eram levadas para o palácio para serem criadas. Eram treinadas nas mais diversas funções pois, como chegavam muito jovens, não se sabia o quanto teriam de capacidade ou beleza. O treinamento incluía modos, etiqueta, leitura do Alcorão, tecer, bordar, dança, poesia, música. Sim, incluía dança, como parte do aprendizado, mas não eram as “dançarinas do palácio”. Este treinamento era supervisionado pela sultana valide, autoridade máxima feminina no palácio. Algumas podiam ser nomeadas como servidoras do “oda” (quarto) do sultão, ou encarregadas de suas roupas ou de seu banho. Então, as odaliscas eram as escravas do palácio, treinadas para diversas funções. E, apesar de dançarem um pouco, não eram as “dançarinas do palácio”, mas sim criadas (DIB, 2013).
As mulheres no mundo mulçumano constituem objetos de fascínio para o Ocidente: ontem “fantasia orientalista”, a sensual criatura do harém; hoje vítima de opressão, velada e genitalmente mutilada. Ambas as imagens representam um Oriente estereotipado, tanto voluptuoso quanto cruel, mas sempre de uma alteridade aparentemente intransponível. Ambas são, portanto, exageros que não descrevem a realidade social da esmagadora maioria das mulçumanas, correspondendo apenas a fragmentos da realidade (DEMANT, 2015, p. 148).
O nosso estudo vai problematizar a Dança do Ventre fazendo referências ao Oriente estereotipado desde o processo colonizatório até a atualidade quando surge uma idéia questionável de Orientalismo. Quando nós da civilização ocidental contemporânea olhamos para esse mundo de mulheres de véus e burcas qual o sentimento que nos atravessa? Que paisagem social descortinamos?
Procurando chegar mais perto da problematização reconhecemos que o discurso criado sobre Orientalismo nasceu entre os europeus quando quiseram destacar a existência de Oriente e Ocidente. Nós e eles. Essa divisão reconhecida por Edward Said (1978) como imperialista, criada por marcos colonizadores distinguia os europeus e não europeus. A intenção inicial do autor ao discursar sobre Orientalismo foi fazer um estudo crítico das tradições do mundo árabe e do mundo ocidental cristão hegemônico, mais que um simulacro orientalista.
A tentativa desta pesquisa é elucidar que o mundo oriental tem outras organizações para a vida pública da mulher. São práticas sociais que determinam os sujeitos do nascimento até o final da vida. São funções sociais criadas para a operação e funcionamento de sistemas oligárquicos privados, que co-determinam a existência das mulheres. A burca é uma moldura que potencializa uma ambientalidade espaço-temporal interna para quem usa. Para quem vê do lado ocidental parece uma inaceitável paisagem social velada, criada por fundamentalismos culturais.


[1] Burca: peça que cobre todo o rosto, com uma rede ou tela na altura dos olhos para permitir a visão; Niqab: véu que cobre todo o rosto, exceto por uma abertura na altura dos olhos; Chador: véu semicircular que envolve a cabeça, cobre todo o corpo e deixa a parte frontal do rosto à mostra; Al-Amira: cobre toda a cabeça e o pescoço e é composto por duas peças: uma cilíndrica (uma espécie de touca), que se ajusta ao contorno do rosto, deixando-o à mostra, e um lenço que cobre a cabeça; Hijab: lenço que cobre os cabelos e o pescoço, com o rosto à mostra; Shayla: lenço grande e retangular, que cobre a cabeça e é enrolado no pescoço, cruzando na altura dos ombros.


[2] Hadiths referem-se à tradição sobre atos ou falas de Maomé.
[3] Ulama ou ulemás (sing. alim): “sábios” ou “preparados”; camada de especialistas em questões religiosas e jurídicas.
[4] Waqf (pl. awqaf): fundação religiosa ou beneficente baseada na doação de bens para fins religiosos ou sociais.

[5] O termo vem do turco Uadahlik, que significa criada de quarto. Esse termo originou-se e era empregado nos palácios dos governantes do Império Turco-Otomano. [...] O palácio era a sede do Governo e também a moradia do governante e sua família. [...] Uma das estruturas do palácio era a do harém.[...] Existe uma hierarquia clara dentro dos haréns dos palácios e as mulheres não estavam preocupadas apenas em ficar reclinadas descansando, como é visto em diversas pinturas dos orientalistas. [...] A hierarquia dentro do harém seguia o seguinte padrão: odaliscas (as virgens, que não foram tocadas pelo sultão), concubina (companhia noturna), ikbals (favoritas) e kadins/haseki (similar a esposa) (DIB, 2013).

[6] Harém, nada mais é do que o espaço reservado à vida íntima, familiar num palácio. É o local de convivência da família e dos parentes próximos, além de parte da criadagem. Outras pessoas não podem entrar (DIB, 2013).




REFERÊNCIAS

DEMANT, Peter. O mundo muçulmano. São Paulo: Contexto, 2015.

DIB, Márcia. Será que as bailarinas são odaliscas?Disponível em: <http://marciadib.blogspot.com.br/2013/02/sera-que-as-bailarinas-sao-odaliscas.html>. Acesso em: 20 fev. 2013.


SAID, Edward W. Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.

 


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